Rádio Gatilho FM – futuro e nostalgia

Consegue se lembrar daquelas programações que rolavam em estações de rádios, em que uma apaixonada, um desiludido, machucado, ou em busca de perdão dedicava uma música especial para um outro alguém especial, com uma dedicatória sendo lida por uma voz lenta, grave e cheia de drama?

Sei que era muito criança para entender a conexão que uma música poderia causar entre duas pessoas. É muito doido pensar que uma música pode representar toda uma história. Poderíamos até dizer que é uma benção quando isso acontece. Imagine: você se apaixonando ao som de alguma música do Djavan, tendo uma poesia capaz de sintetizar todo o sentimento que está nascendo ali diante dos seus olhos. Eu diria que isso poderia ser uma maldição também. E se essa história se acabar? Adeus, bela canção. É ir para o rolê torcendo para que o DJ não toque essa música.


Se for para escolher um gênero que seja capaz de criar esse laço, escolheria o R&B. Numa tradução livre (até demais) de Rythm and Blues, seria algo como: Ritmo e Tristeza. Tristeza mais para uma coisa melancólica, aquele sentimento estranho de quando a gente perde uma coisa que a gente ama. A estranheza de uma presença ausente, sabe?


É graças a esse poder do R&B e dessa tradição das rádios, que a Rádio Gatilho FM se torna um projeto tão interessante. Ela nasce como uma live durante a pandemia da COVID-19, e depois se torna uma playlist/podcast nas plataformas de streaming. Claro, todo mundo abraçou o projeto instantaneamente. O repertório das lives, que depois viravam mixtapes, e das playlists, variavam de clássico como “Sweetest Taboo” da Sade; do R&B nacional do YOÙN cantando “Nova York”; e da nova geração de cantoras como H.E.R. e Summer Walker.

O projeto pedia algo mais e a cena do R&B nacional também. Em junho de 2022 o projeto dava mais um passo: músicos, cantores, o belíssimo palco da Casa Natura, um repertório com clássicos da música brasileira com arranjos novos, modernos e músicas autorais. Jovens talentos do mais alto nível técnico e estético compõe a banda: DJ Nyack nos toca-discos e vocal; Jamah, Hanifah e Cazz nos vocais; Thiago Jamelão na guitarra e vocal; Oscar Junior no teclado,  Beatriz Lima no baixo e Alana Ananias na bateria. O show é aberto por DJs que já proporcionam uma atmosfera para receber os shoes e convidados, já passaram e deixaram um set por lá: DJ Lino, DJ Beans, DJ Esteves, DJ Mitay e DJ Tomboy. O repertório do show acontece entre trabalhos autorias como “Só Eu Sei” da Hanifah, “Perder nas Horas” do Cazz e “Eluá” do Thiago Jamelão; releituras de “O que é o Amor” do Arlindo Cruz e “A Tua Voz” da Gloria Groove interpretada pela excelente voz da Jamah, e a clássica “Quem Não Quer Sou Eu” do Seu Jorge na voz do DJ Nyack. A sinergia e a leveza que a banda tem entre si é cativante e rola de maneira muito natural. Além disso o projeto conta também com grandes convidados como: Max de Castro, Xênia França, Melly, Luccas Carlos, Tássia Reis, Bebé e mais outros artistas.

Fiquei marcado especialmente pela edição que aconteceu no dia 05 de abril de 2024. Existem alguns rolês que você chega e sente que tem alguma coisa diferente no ar, que a noite pode ser especial. O show – aberto com muita elegância pelo set da DJ Tomboy – já contava com belos momentos desde a participação da Bruna Mendez, Doug O cantando com a Hanifah a música “PURPLE“,  e a Beatriz Lima tocando  baixo acústico com a Jamah cantando “O Que É o Amor”. O ponto alto da noite e muito aguardado eram as participações da Luedji Luna, a artista que representa o que é e o que pode ser a Música Popular Brasileira e da Fat Family, o grupo que marcou a geração do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 com tantas canções memoráveis. Luedji é de uma grandiosidade estonteante. Ela tinha tudo a ver com aquela noite já que seu último disco “Bom Mesmo é Estar Debaixo D’água Deluxe” mergulha fundo no R&B. Sua participação contou com a faixa “3 Marias”, além do clássico “Banho de Folhas” e a “Acalanto” na versão que o DJ Nyack remixou em 2019 para o EP Mundo e que estourou na participação dela no projeto COLORS.

Antes de receber o grupo Fat Family, eles cantaram um medley de clássicos do pagodes dos anos 90 com arranjos voltados para o R&B. E isso teve muito significado já que para muitos o pagode noventista foi o nosso R&B. Foi uma daquelas noites em que cada performance acaba fazendo com que o nível suba e aumente a expectativa do que o próximo artista pode fazer. Para receber a Fat Family, Jamah deixou o coração e mais um pouco na apresentação de “A Tua Voz”. Era a entrega necessária para receber um dos maiores grupos vocais que o Brasil pôde ter naquele palco. A clássica “Jeito Sexy” lavou a alma de quem estava lá – a galera que viveu a metade dos anos 90 e viveu a juventude nos anos 2000, em sua grande parte. Era esperada a participação da TALI, filha da Deise Cipriano, o fenômeno vocal que nos deixou em 2019. TALI tinha mostrado seu talento fora do normal na participação no programa The Voice aos 14 anos, mas ver aquilo ao vivo foi surreal. A continuidade de um legado gigante – que precisa de mais reconhecimento e prestígio – construído com muito suor lá quando o R&B brasileiro ainda se desenhava e procurava sua própria identidade. A noite só poderia ser encerrada com “Fim de Tarde” e “Madrugada” na voz da TALI. Abraços e lágrimas aconteciam lá em cima do palco entre a banda e os convidados no fim do show, e o mesmo lá embaixo na pista. Que noite!

Poder ver de perto esse projeto crescer desde a primeira edição, e poder ter deixado um set nele, me deixou com vontade de ouvir da própria banda o que eles pensavam sobre o projeto, o R&B na vida deles, a vida deles no R&B e o que esperavam desse cenário musical.


Como vocês veem a transformação do R&B nacional, e também internacional, e o quanto dele transforma vocês?


Cazz: Mano, às vezes eu acredito que eu faço parte dessa parada porque para mim começou como uma coisa muito pequena, eu não sabia o que queria na minha vida e através da igreja eu conheci essa musicalidade. E é meio complicado dizer sobre isso, porque é muito gigante, não cabe num armário, em palavras, alguma coisa assim, sabe? Vejo isso como uma energia que mudou tudo para mim, que me deu uma perspectiva nova, que me deu uma visão, me dá uma visão de mundo que me faz querer ser melhor, que me faz querer melhorar cada dia mais a minha música, a minha fala, o meu momento com as pessoas.

Hanifah: Eu vejo o R&B muito mais acessível, muito mais aberto para outros gêneros musicais. E como me sinto vendo o R&B mudando? Me sinto muito grata de poder entender, de poder sentir a música assim desse jeito, de poder fazer isso. Obviamente que o R&B é nossa raiz, mas ele permite a gente migrar para vários outros gêneros e fazer música é isso, não tem limite. E viver a arte assim dessa forma tão pura, é muito bom é muito bonito. Me sinto muito privilegiada.

É um R&B com essa junção de tanta coisa, né? É da igreja, do rock, do rap, que faz ser a Rádio Gatilho ser diferente.

Jamah: Ah, eu enxergo isso como… Que difícil essa pergunta, né? Mas eu enxergo como uma evolução muito grande o R&B no Brasil, o espaço tá cada vez maior. E eu enxergo como uma forma de liberdade, a gente poder se expressar como a gente é sem se preocupar com o comercial. Você transmite aquilo que você tá sentindo. Para mim é muito isso: é você transmitir aquilo que você é na essência. Ele me transformou completamente, porque eu costumo dizer que na música você não consegue mentir, ou você é ou você não é, ou você tem algo para oferecer ou você não tem, ou você tá feliz ou você tá triste. Alguma coisa você vai transmitir, o R&B é isso, você consegue transmitir até a tristeza com um pouco de alegria, porque a melodia faz a coisa virar outra parada e que toca e chega nos corações das pessoas do jeito que você não imagina.


É visível que a banda é muito diversa, seja na idade, no gênero, nas regiões em que nasceram ou nas referências e que todos vocês começaram a se envolver com música muito cedo. Como você o quanto isso agrega no projeto?


Jamelão: Acho que a gente fala tanto hoje em autenticidade que eu acho que por mais que a Banda Rádio Gatilho tenha as características de ser uma banda que toca R&B, quando você ouve ela não é esse R&B que todo mundo toca. É um R&B com essa junção de tanta coisa, né? É da igreja, do rock, do rap, que faz ser a Rádio Gatilho ser diferente.

Pra mim é muito legal, muito massa mesmo. E eu tenho a sorte de ter artistas talentosos comigo que acreditam tanto quanto eu no Brasil como um berço de talentos e na cena do R&B


Como é feita a construção dos arranjos? Quem é o responsável? Como é feita a escolha do repertório? E como é a sinergia da banda em todo esse processo?


Jamelão: É o barato que a gente acabou de falar, como todo mundo tem suas várias referências, quando a gente ouve uma música, a gente vai pegando o arranjo e lembrando de outras referências, por exemplo, tem música que tem ideias que lembra a Jill Scott e Michael Jackson, às vezes faz um riff e pá… As referências que nós temos faz a gente montar juntos de maneira espontânea. Vou te falar, é bem rápida a maneira que acontece, porque os ensaios são bem leves, e aí quando começa uma música acaba lembrando outra.


A Rádio Gatilho FM nasce como um projeto nas plataformas digitais durante a pandemia e a galera se identificou muito rápido. Como é ver a transformação desse início digital e adesão do público para um grande show em um palco, com banda e convidad_s?


Nyack: Eu vejo a transformação de um projeto que começou sem pretensão nenhuma durante a pandemia, tornar-se um… não vou dizer um marco, mas um ponto de encontro de pessoas que são de uma cena que poderia ter mais visibilidade devido ao talento e conteúdo que tem apresentado. Falando da cena do R&B do Brasil, é muito gratificante ver pessoas que estavam ali nas lives, hoje, ali na frente do palco, curtindo com a gente e fortalecendo ainda mais o cenário independente musical do Brasil. Pra mim é muito legal, muito massa mesmo. E eu tenho a sorte de ter artistas talentosos comigo que acreditam tanto quanto eu no Brasil como um berço de talentos e na cena do R&B. É muito legal para mim, ver toda essa história que a Rádio Gatilho tem construído.

E quanto mais, melhor, para que a gente consiga fortalecer essa cena e juntar todo mundo para que o mercado veja e consiga enxergar que há sim um público carente de música boa e carente de bons eventos.


Da para ver muito daquela vibe das rádios brasileiras no seu auge quando rolavam aquelas dedicatórias de lovesongs entre amantes. O quanto tem de influência disso na Radio Gatilho?


Nyack: A influência da rádio gatilho foi com certeza essa era de ouro das rádios. Ficar acordado até tarde para ouvir as músicas lentas, não só as músicas lentas no sentido de mandar para outras pessoas, mas também como estudo mesmo. Muitas músicas que a gente conhece hoje, muitas músicas das quais eu toco, eu conheci através desses programas de rádio. Então com a Rádio Gatilho tentei trazer um pouco dessa sensação, essa atmosfera, que infelizmente a gente  perdeu por conta da tecnologia, por tudo estar nas plataformas de streaming e o acesso que tem sido muito mais fácil para todos só que sem um filtro, então acho que a Rádio Gatilho traz consigo um filtro daquilo que a gente acha que pode ter mais visibilidade, ou pode ter tanta visibilidade quanto as outras músicas que estão nas paradas de sucessos e nas rádios.


No palco da Rádio Gatilho já passaram nomes de artistas em ascensão como Jean Tassy e nomes consagrados como a Tassia Reis, como você acha que a Radio Gatilho pode contribuir com o R&B brasileiro e vice-versa?


Nyack: Eu acho que a Rádio Gatinho pode contribuir continuando esse trabalho que a gente tem feito de trazer artistas consagrados e novos no mesmo palco para que o público passe a conhecer ou talvez simplesmente só admirar o trampo mesmo daqueles artistas dos quais eles são fãs. E acho que o R&B brasileiro pode contribuir com a Rádio Gatilho continuando a entrega desses trabalhos maravilhosos que têm saído. A gente tem a Bebé,  Melly, a BIAB e o YOÙN do Rio de Janeiro, uma galera muito boa que levanta a bandeira do R&B do Brasil. E quanto mais, melhor, para que a gente consiga fortalecer essa cena e juntar todo mundo para que o mercado veja e consiga enxergar que há sim um público carente de música boa e carente de bons eventos.

Foto: Gustavo Sena